
Patrícia* tinha 11 anos de idade quando começou a ser abusada pelo próprio pai. Dois anos depois, uma denúncia anônima do caso levou a menina à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) para prestar depoimento. Como acreditava que não poderia provar a violência, ela negou a acusação.
“Eu tinha muito medo das ameaças que eu sofria na época e do que poderia acontecer. Eu não tinha noção de como poderia resolver isso”, conta Patrícia, hoje com 27 anos.
Os abusos continuaram até os seus 16 anos de idade, quando ela contou com apoio da sua irmã, do namorado e da família de criação para fazer uma denúncia. Mesmo assim, seu pai só foi preso quatro anos depois e, hoje em regime semiaberto, estuda na mesma universidade da filha.
Nos últimos 10 anos, cerca de 540.000¹ registros de estupro e de estupro de vulnerável foram feitos em delegacias de polícia em todo o Brasil. A Pesquisa Nacional de Vitimização, realizada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça em 2013, mostrou ainda que apenas cerca de 7,5% das vítimas de violência sexual brasileiras notificam o ocorrido às autoridades.
Entre 2012 e 2014 foram registrados 148.960 boletins de ocorrência por estupros no Brasil, mas o número de presos por este crime no mesmo período no país foi de apenas 42.737, segundo a Agência Lupa.
¹De acordo com 10 edições do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O Código Penal define estupro como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (CP, art. 213º, caput).
O estupro de vulnerável está tipificado no art. 217-A do Código Penal: "Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência". Por pessoa vulnerável, considera-se: "pessoa menor de 14 anos; pessoa que, por enfermidade mental, não tiver o necessário discernimento para a prática do ato; pessoa que, por deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para a prática do ato; pessoa que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência".

A alta subnotificação nos crimes de violência sexual
A maior parte das mulheres deixa de denunciar os seus abusadores por razões como medo do agressor, vergonha de relatar o ato, receio de que não acreditem no que diz, dificuldade de entender que o que aconteceu foi uma violência sexual, ou falta de confiança na justiça brasileira.
A Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo (Comesp) define como violência sexual:
“Quando o agressor obriga a mulher a manter, presenciar ou participar de relação sexual não desejada, por meio de intimidação, ameaça, coação e/ou força física. Também é considerado violência sexual quando o agressor induz a vítima a comercializar ou utilizar de qualquer modo sua sexualidade; quando ele força o matrimônio, a gravidez ou o aborto e, também quando limita ou anula os seus direitos sexuais e reprodutivos.”
A analista de psicologia do Ministério Público da União (MPU) Thayse Duarte explica que muitas vítimas têm dificuldade de falar sobre a violência pelo desenvolvimento de algum trauma: “Ao falar sobre isso, a vítima revive aquela situação. É como se ela estivesse experimentando aqueles sentimentos de novo”, diz.
Reconhecer uma violência é ainda mais difícil quando existe um vínculo afetivo entre a vítima e o agressor porque, segundo a psicóloga, o ato pode acabar sendo naturalizado e até romantizado – fator presente na maioria dos casos de abuso sexual no Brasil. Isso porque 85,2% dos autores de casos de violência sexual notificados no país em 2020 eram pessoas próximas à vítima, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Outros dois motivos que impedem mulheres de denunciar seus agressores andam juntos: o medo da repercussão e pouca fé na capacidade resolutiva dos órgãos de justiça brasileiros. No caso da influenciadora digital Mariana Ferrer, por exemplo, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina concluiu que não havia provas que sustentassem a acusação de estupro de vulnerável contra o empresário André Aranha. Algumas das provas apresentadas pela defesa foram: exame de DNA de material encontrado na roupa íntima da jovem, atestando a presença do material genético do acusado; exame de corpo de delito, provando a relação sexual e o rompimento do hímen; depoimento de um motorista de aplicativo que relatou ter levado Mariana para casa "em estado transtornado, desconcertada"; e imagens de câmeras de segurança do estabelecimento onde o fato aconteceu que mostram a jovem cambaleando.
Uma gravação do julgamento do caso ainda mostra o advogado de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, humilhando Mariana na tentativa de minimizar as acusações devido à sua conduta passada. O advogado exibiu fotos da jovem chamando-as de "ginecológicas". Ele também disse que "jamais teria uma filha do nível" da influenciadora.
O caso, que ganhou grande destaque na mídia, exemplifica por que milhares de mulheres não denunciam os seus abusadores: os crimes de violência sexual são os únicos em que a vítima precisa provar que não é culpada e que não contribuiu para que o delito acontecesse.
Após a grande repercussão do acontecimento, entrou em vigor a Lei Mariana Ferrer em 22 de novembro. A nova lei 14.245/21 "coíbe a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo”.
Patrícia conta que, no julgamento, o advogado do pai fez muitos questionamentos, agindo como se a história dos abusos fosse forjada por ela. “A tese deles era que eu tinha inventado tudo isso porque ele não aceitava que eu namorasse. Nas redes sociais, meu pai compartilhava casos sobre crianças que contavam histórias fantasiosas”, lembra.
Uma das percepções que a jornalista Ana Paula Araújo teve, durante os quatro anos de apuração do seu livro "Abuso: a cultura do estupro no Brasil", foi justamente de que a vítima é a pessoa julgada nos crimes sexuais. “Me deixou muito triste constatar que o estupro é o único crime em que as vítimas é que sentem vergonha. As pessoas que sofrem violência sexual têm vergonha de falar, como se elas que tivessem cometido um crime”, contou a repórter em entrevista.
Patrícia, que estava no ensino médio na época em que denunciou os abusos do pai, foi questionada pelos colegas e até pela escola, a qual precisou deixar. “Nas redes sociais, eu recebia muitas mensagens anônimas das pessoas falando que eu queria me aparecer com a história”, conta. “O colégio se manifestou contra mim, disse que eu tinha inventado aquilo na minha cabeça. As pessoas que deveriam ser o meu porto seguro estavam me virando as costas.”
A dificuldade de produzir provas
Um dos principais motivos que leva à subnotificação e ao baixo número de condenações por crimes sexuais é a dificuldade que as vítimas encontram para apresentar provas. A comprovação desses crimes é uma das mais complicadas na justiça – e esse é um problema complexo que envolve diversos fatores.
Rúbia Cruz, advogada e coordenadora nacional do Comitê Latino Americano e Caribenho dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil), instituição que encaminhou o caso Maria da Penha à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), desenvolveu uma pesquisa sobre as provas de violência sexual e discutiu sobre como o judiciário se apega às provas materiais que, muitas vezes, não são obtidas nos casos de abuso.
“Quando falamos em provas materiais, nos referimos àquelas palpáveis, possíveis de se obter através do exame de corpo de delito. O exame, feito no Instituto Médico Legal (IML) com médicos peritos legistas, verifica se há presença de esperma, ruptura do hímen e lesão corporal da vítima, por exemplo. Seria da materialidade do crime, algo que comprove através de lesões ou presença de DNA que o crime aconteceu”, diz Rubia.

Exame de corpo de delito
O problema é que o exame de corpo de delito não é suficiente para constatar grande parte dos crimes sexuais. Isso porque nem sempre há ejaculação e/ou violência física e a violência sexual não ocorre necessariamente através da penetração. Além disso, muitas vítimas podem levar um tempo para denunciar ou mesmo para compreender que foram violentadas. Durante esse período, vestígios do crime podem desaparecer do corpo da mulher.
Segundo Rúbia, alguns abusadores inclusive usam preservativo, já pensando em “escapar” de um possível exame. “Já peguei casos em que as mulheres que sofreram violência alegaram que o estuprador usou preservativo. Especialmente os que são estupradores de filhas, sobrinhas, de crianças e jovens adolescentes que são da família. Alguns têm esse cuidado da camisinha, justamente por conta da prova. É tudo bem pensado muitas vezes”, relata.
Além disso, a estrutura de atendimento das delegacias é precária em muitas cidades do Brasil. Gabriela*, que ano passado foi abusada por um amigo, se dirigiu à Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) de Santa Maria (RS) em um sábado, no dia seguinte ao acontecido, mas não conseguiu fazer a denúncia porque o local não abre aos fins de semana. O horário de funcionamento da delegacia é de segunda a sexta-feira das 08:30 às 12:00 e das 13:30 às 17:00.
A jovem de então 20 anos se dirigiu a uma Delegacia da Polícia comum. “Um senhor me atendeu e a situação já foi desconfortável só pelo fato de eu ter que explicar o que havia acontecido comigo para um homem. Eu contei a história chorando”, lembra Gabriela.
A falta de acesso a delegacias especializadas afeta milhões de brasileiras: dos 5,5 mil municípios do país, apenas 427 contam com uma delegacia de Atendimento à Mulher, segundo reportagem da Piauí. Ou seja, apenas 7% das cidades brasileiras. O problema afeta principalmente os municípios pequenos, entre os quais somente nove das 3.600 mil cidades com até 20 mil habitantes têm delegacias de atendimento à mulher. Juntos, tais municípios somam 32 milhões de moradores.
Mesmo denunciando o crime sexual um dia após a agressão, Gabriela conseguiu realizar o exame de corpo de delito depois de uma semana, uma vez que o Instituto Médico Legal (IML) não tinha disponibilidade imediata para a avaliação. “Eu fiz a denúncia no sábado e só pude ligar pra marcar na segunda-feira, por ser o próximo dia útil. Na segunda, me encaminharam para fazer o exame só na sexta-feira.”
Rúbia Cruz aponta que essa falta de estrutura é um dos grandes problemas do apego às provas materiais nos crimes de violência sexual. “Não existem Departamentos Médicos-Legais nas cidades do interior, na sua imensa maioria. E não tem como ampliar [o acesso] porque é preciso diversos aparelhos para fazer os exames. São equipamentos caros, que não é possível ter em todo o estado”, diz.
“Existem dificuldades para a realização deste exame, que sequer é disponibilizado em muitas cidades do interior. As instalações e os recursos dos departamentos médico-legais são precários, faltam recursos humanos, e, especialmente, existe a desinformação das vítimas sobre a importância deste exame para o processo penal” – Rúbia Cruz, advogada e coordenadora nacional do CLADEM
O estado de Alagoas, por exemplo, conta com apenas duas unidades do IML para atender 102 municípios – uma em Maceió e outra em Arapiraca. O Instituto da capital cobre 46 cidades, enquanto o segundo cuida dos demais 56. De acordo com José Cavalcante de Amorim Medeiros, perito geral adjunto da Perícia Oficial do Estado de Alagoas, as vítimas de violência sexual devem se deslocar até o IML que atende a sua região para realizar o exame de corpo de delito. Ou seja, uma mulher que tenha sido estuprada na cidade de Mata Grande, no norte do estado, precisa percorrer cerca de 170 km (quase 3 horas de viagem de carro) até Arapiraca apenas para realizar o exame pericial.
“A delegacia responsável pelo inquérito leva a vítima [até o IML], ou, se ela preferir, pode se deslocar em veículo próprio, mas acompanhada de policiais da delegacia”, afirma o perito.

A falta de preparo de profissionais do IML para a realização de exames de corpo de delito é outro problema que as vítimas podem enfrentar ao longo da jornada de tentar provar a violência sexual. Patrícia, que passou pela situação em 2010, conta que se sentiu muito constrangida: “Fui na perícia fazer o exame de corpo de delito e eles me trataram como uma pessoa perdida, alguém totalmente inconsequente”.
Em 2013, o Decreto nº 7.958/2013 estabeleceu diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre as orientações, está o princípio do “respeito da dignidade da pessoa, da não discriminação, do sigilo e da privacidade” em aspectos como “a disponibilização de espaço de escuta qualificada com privacidade, de modo a proporcionar ambiente de confiança e respeito”.
Ainda assim, a realização do exame de corpo de delito não garante que o caso de violência sexual seja avaliado. No ano passado, o então ministro da justiça Sergio Moro afirmou que havia mais de 100 mil vestígios sexuais parados em todo o Brasil, ou seja, materiais coletados em exames de corpo de delito em unidades do IML que ainda não haviam sido processados e investigados. O número foi revelado na inauguração do primeiro Centro Multiusuário de Processamento Automatizado de Vestígios Sexuais (CeMPA-VS) do país, que contaria com uma plataforma de extração de DNA para a análise dos exames a partir de um investimento de cerca de R$ 3 milhões, de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
Na abertura do CeMPA-VS, em março de 2020, o Ministério da Justiça prometeu que o novo órgão seria capaz de analisar mais de 5.000 vestígios sexuais ao ano. No entanto, em dezembro de 2021, um ano e nove meses depois, apenas 1.590 vestígios foram processados, como informou a pasta à reportagem por e-mail. Segundo o Ministério, o atraso ocorreu devido à pandemia. “O CeMPA-VS foi concebido antes da pandemia de Covid-19, prevendo a vinda de peritos estaduais para Brasília, onde se localiza o Centro. Este planejamento inicial sofreu alguns ajustes em função da pandemia e diversas viagens tiveram que ser canceladas”, relatou a assessoria.
Mesmo com a volta de viagens e atividades do governo após a flexibilização de restrições da pandemia, o MJSP não informou um plano de retomada da atuação do CeMPA-VS até o fechamento da reportagem em 30 de dezembro de 2021.
Prova testemunhal e palavra da vítima
De acordo com o artigo 167 do Código de Processo Penal, “não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”, mas poucos são os casos de violência sexual em que existem testemunhas.
Mesmo que esses crimes aconteçam, em maioria, somente na presença da vítima e do agressor, a palavra da vítima não tem valor maior que outros meios de prova, como explica a advogada Rúbia Cruz.
“A palavra da vítima tem o mesmo valor de uma prova testemunhal, basicamente. Porque ela é vítima e testemunha do fato que aconteceu e, se eles [operadores do direito] acharem que a mulher errou na resposta ou foi contra o que falou em outro depoimento, a palavra dela já não tem validade”, afirma.
O processo de provar esses crimes torna-se ainda mais difícil porque o relato de pessoas que enfrentam situações de violência pode ser afetado por seu estado emocional.
“Quando passamos por uma situação traumática, o nosso cérebro age como um sistema de defesa: ele tende a apagar algumas memórias e criar outras”, diz a psicóloga Thayse Duarte. Assim, a vítima pode se contradizer ou falar algo que não é verdade, mesmo tendo certeza que não está mentindo.
A profissional explica que é importante que o depoimento da vítima seja obtido somente uma vez durante o processo. “Primeiro, porque é uma violência, logo, é sofrido para a mulher falar aquilo. Segundo, porque pode ser prejudicial para a defesa da vítima, já que o juiz pode entender que ela se contradisse. Em uma audiência ela pode falar uma coisa e, na outra, dizer algo diferente. Como o juiz tem um critério muito objetivo, ele não tem a sensibilidade de entender essas coisas”, explica a psicóloga do MPU.
Segundo Rúbia, esse pode ser, de fato, um agravante para a vítima: “Ela pode ter um depoimento mais completo somente depois de comparecer na delegacia no primeiro momento. Isso, às vezes, não é bem visto. Pode parecer que ela está aumentando ou que foi orientada pelo advogado a mudar o relato”.
No caso de vítimas crianças e adolescentes, o problema é amenizado por meio do depoimento especial, instituído pela Lei nº 13.431/17. O chamado “depoimento sem danos” passou a regulamentar a escuta especializada feita por profissionais como psicólogos e assistentes sociais. De acordo com o artigo 9º da Lei, “a criança ou o adolescente será resguardado de qualquer contato, ainda que visual, com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento”.
Thayse explica que a escuta entre criança ou adolescente e o profissional acontece em uma sala com microfone, telefone e câmera, para que o juiz consiga acompanhar e participar da audiência de maneira indireta. Para realizar algum questionamento, ele liga para o psicólogo ou assistente social e solicita uma pergunta. “O profissional adequado encontra a melhor forma de perguntar aquilo para a/o jovem, porque muitas vezes o juiz é muito diretivo – e essa diretividade pode ser uma violência”, afirma a psicóloga.
No entanto, para Soraia Mendes, advogada criminalista especialista em direitos das mulheres, todas as vítimas de violência sexual, incluindo mulheres adultas, também deveriam ter direito ao depoimento especial.
“Defendo que [o depoimento] não seja tomado diretamente pelo juiz, nem pelo Ministério Público, nem pela presença de qualquer pessoa que não seja habilitada para uma escuta qualificada e acolhedora. Não pode ser na sala de audiências, tem que ser de uma forma em que a escuta seja privilegiada”, afirma a jurista, que também é ex-coordenadora nacional do CLADEM e pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Descrédito da vítima
A palavra da vítima é altamente questionada em crimes de violência sexual. Rúbia Cruz afirma que a percepção de muitos operadores do direito é que a mulher queria tal relação sexual violenta. “Nos crimes sexuais, a vítima sempre é julgada – diferentes de outros delitos. Nesses casos, é sempre dito que a mulher está mentindo, ou que ‘não foi bem assim’, ou ela queria, mas depois se arrependeu”, diz.
Como boa parte dos crimes sexuais não envolve o uso de armas ou violência física, e sim intimidação e violência psicológica, muitas mulheres não conseguem se ver livres da situação – o que é questionado dentro e fora das audiências criminais.
“Nos crimes sexuais, há uma verdadeira inversão de valores: a vítima vê-se obrigada a provar que não contribuiu, de forma alguma, para a ocorrência do fato e que vive de acordo com o papel determinado pelos padrões sociais preestabelecidos.” – Rúbia Cruz, advogada e coordenadora nacional do CLADEM
Uma pesquisa de 2016 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que 42% dos homens brasileiros com 16 anos de idade ou mais acreditavam que “mulheres que não se dão ao respeito são estupradas”. Essa percepção invade também os espaços jurídicos.
Em 1998, a jurista Silvia Pimentel e a antropóloga Ana Lúcia Schritzmeyer já discutiam como os valores sociais prejudicam as mulheres no âmbito do direito. No artigo “Estupro: Direitos Humanos, Gênero e Justiça”, elas afirmam: “Os valores sociais, por vezes travestidos em estereótipos e preconceitos discriminatórios, atuam sub-repticiamente, inconscientemente nas argumentações dos operadores do Direito, impedindo-os de desempenharem suas funções tendo em vista o respeito, a dignidade e a justiça”.
Em meio a tantos questionamentos sobre a sua palavra, muitas mulheres sentem a necessidade de contar a sua história fora dos tribunais. Em meados de 2020, o movimento #exposed incentivou milhares de vítimas de violência sexual a denunciar seus agressores nas redes sociais. As exposições, que tomaram grandes proporções em diversos estados do Brasil, contaram com mulheres publicando os nomes de seus agressores e histórias dos abusos que sofreram.
O movimento gerou um debate sobre a necessidade e os riscos de expor agressores na internet. Maira Pinheiro, advogada de uma das três mulheres que denunciaram o ex-BBB Felipe Prior por estupro e tentativa de estupro, comenta a prática:
"A violência contra a mulher é um entendimento que ainda precisa ser consolidado, por ser uma coisa nova no âmbito de discussões do direito. Mas há setores entre nós que entendem que a mulher tem o direito de contar a própria história. Esse direito está relacionado com a incapacidade do Estado de dar soluções que efetivamente tragam reparação à vítima, porque podemos dar uma recompensa financeira ou uma punição criminal, mas nenhuma dessas duas resoluções tem o potencial de curar as feridas que podem vir com a violência sexual. É importante para a mulher denunciar o que aconteceu para que, assim, ela elabore com ela mesma que aquilo não foi coisa da sua cabeça."
Entenda o movimento #exposed na reportagem em vídeo:
Avaliação psicológica
Com os entraves encontrados nos principais meios de prova dos crimes de violência sexual, Rúbia Cruz já propunha, no começo deste século, a utilização do exame psíquico da vítima como meio de prova usual no processo penal, “para que não ocorra a impunidade quando evidenciada a violência sexual”. Porém, quase 20 anos depois da publicação de seu artigo, as coisas não mudaram. “A ideia era que esse tipo de laudo psíquico pudesse ser feito de uma forma ampla, mas não se instituiu como uma política pública nem de saúde, nem uma política pública judiciária”, afirma a advogada.
Segundo Soraia Mendes, basta que os operadores do direito estejam dispostos a trabalhar com esse tipo de prova, o que não costuma acontecer. “O próprio Código de Processo Penal não proíbe que se faça uma produção de outras provas além das materiais. Isso está no Código desde a década de 40. A questão é querer usar”, diz. “O MP ou a assistência da acusação, conjuntamente com a vítima, precisam promover a produção desta prova, ou seja, de um laudo que traga essa marca interna que consegue provar a existência do crime.”
A psicóloga do MPU, Thayse Duarte, diz que a avaliação psicológica não costuma ser pedida porque juízes, promotores, advogados e o sistema de justiça de um modo geral lançam uma visão muito objetiva sobre o fato. “Eles pegam o processo e querem saber do fato, de datas. É um pouco diferente da nossa visão na psicologia. A gente quer saber como aconteceu, qual contexto estava por trás”, afirma.
“Os operadores do direito se perguntam se as coisas estão fazendo sentido na interpretação objetiva da análise. Se sim, eles acham que não precisa mesmo de uma avaliação psicológica ou uma perícia. Então, eles já conseguem fundamentar sua decisão com base no que está escrito no processo.” - Thayse Duarte, psicóloga do MPU
De acordo com a profissional, os psicólogos do Ministério Público podem auxiliar na produção de provas de duas maneiras: na oitiva de crianças e adolescentes nos depoimentos especiais e na perícia psicológica forense. Esta acontece quando o juiz nomeia um perito para realizar uma investigação com a finalidade de compreensão e interpretação do ocorrido, de acordo com uma visão técnica.
Os psicólogos também podem trabalhar na perícia psicossocial do MP realizando escuta especializada sem a intenção de produzir provas. “Fazemos um estudo psicossocial para compreender o atual contexto da vítima, verificar possíveis situações de risco ou vulnerabilidades e, principalmente, se certificar de que as pessoas envolvidas receberam o encaminhamento necessário”, explica Thayse.
Contudo, a profissional lembra que, em nenhuma das frentes de trabalho, o psicólogo poderia afirmar categoricamente se houve violência. Ela explica que “É possível, no entanto, sugerir, de acordo com os dados coletados nos processos de intervenção, que pode haver indícios de que a vítima tenha sido exposta a alguma violência”.
Um estudo de 2014 feito por psicólogas do Rio Grande do Sul mostrou a percepção de operadores do sistema de justiça sobre o papel da psicologia nos casos de abuso sexual. Cátula Pelisoli e Débora Dalbosco afirmam que, segundo os participantes da pesquisa, a psicologia “apresenta conhecimentos e técnicas que podem contribuir para a busca de informações e detalhes das situações abusivas, podendo ser decisivas para o processo judicial”.
Além disso, Soraia Mendes acredita que a avaliação psicológica é fundamental porque parte das violências sexuais fogem do que é imaginado por grande parte da sociedade e não deixam marcas físicas. “Geralmente as pessoas descrevem uma vítima de crime sexual como uma mulher toda arranhada, com a roupa rasgada e com marcas de sêmen. Assim, se imagina a produção de uma prova material. Só que, muitas vezes, a marca, muito especialmente do estupro, não fica no corpo. Então ela pode não ter nenhum hematoma, arranhão ou marca aparente”, diz.
“Dizem que somente a palavra da vítima não pode condenar alguém e eu concordo. Mas não significa que a palavra da vítima, agregada a um exame pericial feito por pessoas gabaritadas – da área da neurociência, da psiquiatria, da psicologia e de todas as áreas que trabalham com a mente humana de uma forma geral – não seja suficiente para isso.” – Soraia Mendes, advogada criminalista e pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela UFRJ
Porém, assim como no caso dos exames de corpo de delito, a ampliação do uso de exames psicológicos nos MPs também é dificultada por falta de estrutura. Segundo Thayse, que atua no MPU, faltam profissionais que façam esse trabalho. “A nossa equipe está bem escassa. Entre psicólogos e assistentes sociais, há cerca de 40 servidores – e mesmo assim nós quase não conseguimos dar conta do Distrito Federal porque falta gente. Por mais que pareça bastante, não é”, conta.
Segundo a psicóloga, o trabalho da equipe no MP demanda tempo e seu tamanho reduzido prejudica as avaliações. “Essa intervenção não é algo que acontece uma vez. Às vezes, a gente depende de outras pessoas mandarem relatórios e atualizações. Existem vários elementos dificultadores do nosso trabalho, mas se tivesse mais gente na equipe com certeza daria uma desafogada.”
Esse problema é agravado, de acordo com o alerta da advogada Rúbia Cruz, pela falta de qualificação dos profissionais para a atividade. “Eu tenho visto muitos laudos ruins no judiciário porque são terceirizados, e não feitos por peritos judiciais. Então, existe também esse risco”, afirma. “O exame é importante, mas precisa ser qualificado, porque senão pode continuar a impunidade pelo erro.”
“A impunidade por não ter política pública já existe. E a impunidade por ter uma política pública que seja deficitária porque as pessoas não são qualificadas também é um problema.” – Rúbia Cruz, advogada e coordenadora nacional do CLADEM
A advogada defende que não é preciso instituir novas leis para que a avaliação psicológica seja utilizada como auxílio às provas de violência sexual, mas sim garantir a boa execução do que já é previsto.
“Com a legislação que temos, nós já conseguimos fazer essa prova. Não precisa inventar nada. O que a gente precisa ter é uma política pública efetiva no Instituto Médico Legal com peritos que compreendam a questão do estresse pós-traumático, das sequelas psicológicas que as vítimas têm nos crimes sexuais, especialmente quando são crimes reiterados, em crianças e adolescentes que acaba sendo cotidiano.”
A promotora do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Estefânia Paulin afirma que o exame psicológico é usado quando existe dúvida em relação à palavra da vítima e nos casos de crianças. “Se eu tenho outros elementos que me levam a crer que aquele fato aconteceu e que a vítima está falando a verdade, eu não peço. Mas se há alguma dúvida que eu possa sanar, eu solicito a avaliação”, diz.
Estefânia, que atuou no caso de denúncia de estupro contra o jogador Neymar Junior em 2019 por parte da modelo Nájila Trindade, conta que pede o exame psicológico em cerca de 50% dos seus casos. “Mas cada promotor atua de um jeito, já que a avaliação não é obrigatória”, completa.
Indubio pro reo e machismo estrutural
As dificuldades de produzir provas nos crimes de violência sexual contra a mulher podem levar à absolvição do réu por benefício da dúvida. No entanto, algumas juristas acreditam que há decisões de juízes afetadas por concepções morais de uma sociedade patriarcal que não garante proteção às mulheres.
“No processo penal, são resguardados os direitos individuais do réu que, em sua grande maioria, é absolvido pelo benefício da dúvida, decorrente da falta de provas. É importante alertar que a falta de provas, apesar de ser a justificativa legal, não é normalmente o que decide, pois as influências culturais e concepções morais atuam indiretamente no julgamento”, afirma Rúbia Cruz em seu artigo.
Soraia Mendes explica que a legislação é a diretriz fundamental a ser seguida na sociedade em que vivemos, mas toda lei exige interpretação. Segundo a jurista, o direito não está fora do contexto de uma cultura “patriarcal, antropocêntrica, heteronormativa, branca e da classe dominante”, o que imprime efeitos sobre as interpretações lançadas pelos sujeitos que o compõem.
“A régua da moralidade é mais do que clara – e ela não pode ser utilizada como um padrão. O que nós precisamos ter é um padrão valorativo de respeito à dignidade da pessoa humana, como homens e como mulheres. Mas a forma como estes [operadores do direito] interpretam acaba trazendo sempre uma desproteção pras mulheres”, afirma a advogada.
Para que isso seja transformado, Soraia acredita em uma “refundação epistemológica do próprio direito, da forma como nós fazemos pesquisa em criminologia e compreendemos o processo”. Segundo ela, é necessário extinguir os padrões que levam a resultados enviesados e negativos para grupos oprimidos.
“A gente tem que colocar isso abaixo, e sem medo. Porque a possibilidade que abre-se da desconstrução é outra construção. Uma construção de valores participativos e integrativos de respeito, igualdade e presença de indivíduos – de homens, mulheres, cis, trans – dentro do respeito à sua própria existência.”
*Nomes fictícios foram adotados para garantir a preservação da identidade e da segurança das vítimas.
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